Mas não me olhes assim. Continuo a ser quem fui. Quero lutar pelas mesmas coisas. Quero ser alguém. Mas achas que alguém me vê?
Também eu queria cair, chorar... para depois me levantar e comigo, erguer os meus, e não voltar a cair. Mas paro, penso e vejo que agora sou livre. E se chorasse era pelo que passei, e não pelo que sou.
Lembro-me de ser miúdo e chegar a casa a chorar porque os outros rapazes me tinham dito que eu era gordo ou feio, ou pior, gordo e feio. Custou tanto que a minha lembrança a seguir é estar no hospital, por ter deixado de comer. A minha vida nunca foi fácil. Ou então eu compliquei-a.
E o meu gato... O meu querido gato! O meu pantufa... Como pude afeiçoar-me tanto a um bicho? Ele entendia-me. Fez aquilo que nunca ninguém quis fazer comigo. Deitou-se a meu lado e mimou-me enquanto chorei, sem me perturbar com perguntas. Limitava-se a encostar o seu focinho à minha cara e fitar os meus olhos encharcados com um olhar ternurento como se soubesse exactamente aquilo por que passava. A sua morte não foi fácil. A morte de um amigo nunca é fácil.
Remei na dor durante muito temo. A sensação de impotência face ao mundo sempre me perturbou e a minha mania de ser diferente arrastou a minha vida para as ruas. Nunca gostei de estereótipos, nem de pessoas que falassem deles.
A maioria das pessoas que passa por mim acha que sou um drogado, ou então, nem me olham ou reparam que estou aqui. O mundo tem demasiada pressa, e o seu maior erro é todos acharem que são os heróis da história. Nem sequer tem de haver vilões...
Começam-me a faltar as forças para falas, mas eu tenho tanto para contar... Já alguma vez te falei da vez que não vi a minha avó? Eu amava aquela senhora. O seu cheiro característico, as mãos frias, a pele seca, a barriguinha saliente... Um dia os meus pais disseram que eu tinha de ver a vó para lhe dizer adeus. E eu não quis. Claro que não queria dizer adeus à avó! Eu queria-a comigo. Depois disso, chorei, chorei, chorei... Desculpa avó.
Sabes rapaz, gostava que a minha história chegasse ao mundo. Gostava que as pessoas soubessem que nasci, fui grande, e agora estou cada vez mais por aqui... Defendi os meus ideais e guiei-me pelo coração. Ela deixou-me. Disse que as amigas dela não gostavam de mim e que não era correcto eu não ser religioso, não ouvir a música que os outros ouviam, não gostar do que os outros gostavam só para marcar a diferença, ofendeu-me, abriu a porta e saiu. Nunca mais a vi. Foi a única mulher que amei.
A única coisa que me ajuda a continuar é a minha crença estúpida de que nada acontece por acaso. Haverá certamente alguma razão para a vida, para a minha vida. Caso assim não seja, não estou aqui a fazer nada.
Cada dia é um tiro que marca, e a ampulheta não para. Só quero estar bem aqui... Estou livre de máscaras. ...
O vento pôs as folhas a dançar em volta do pobre homem. O rapaz despediu-se e foi para casa. Sentou-se ao computador. Dois anos depois, editou então o livro sobre um homem que tinha tudo o que ele ainda não tinha - uma história de vida.
Pegou numa cópia e deixou-a sobre a campa do mestre.
- Obrigado. "
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Encontrei isto num caderno com textos meus (já nem me lembrava da existência de tal coisa) e achei esta espécie de coisa bastante interessante. Não só por contrariar a tendência "saramaguence" de fazer parágrafos gigantescos, mas também porque de certa forma, é um espelho da minha alma.