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terça-feira, 17 de junho de 2008

Gostamos sempre de alguém.

Gostamos de alguém, desde sempre. Desde o momento que a vemos pela primeira vez, até morrermos. Aquela pessoa que te marca, desde o princípio, desde o momento crucial. Aquela pessoa, que por muito que tentes evitar, recai sempre no teu pensamento quando te deitas numa cama sozinha, no escuro de um quarto, e que aparece sempre nos teus sonhos. Não é uma obsessão, e por muitas vezes nem sequer te apercebes disso, mas é aquele sentimento que está lá sempre. Apaixonas-te por outra pessoa, és feliz com ela, mas há lá sempre aquela coisa que te deixa imaginar como seria se a vida não tivesse corrido assim, se não tivesses tomado a decisão de virar as costas a esse alguém, como teria sido tudo. Mas não voltas atrás, nem tomas isso como hipótese. É sempre aquela dor de barriga quando o vês, há sempre aquela tensão de uma história mal resolvida. Mas ficas feliz por ser assim, por teres conservado aquele sentimento, e no entanto teres encontrado a felicidade de outra maneira.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Comptine d'un autre été

[Aconselho a leitura desta espécie de coisa com esta música de fundo: http://www.youtube.com/watch?v=xNEWyy4Qhg4 ]



E naquele momento vi passar toda a minha vida perante mim. Enquanto tocava “Comptine d’un autre été” no meu piano senti a minha longa vida de setenta e oito anos resumida em dois minutos e vinte e dois segundos. A certa altura senti as mãos da minha falecida esposa a acompanharem-me e ela a dar-me um beijo doce na cara. Lembrei-me das nossas discussões estúpidas nos tempos de juventude que acabavam em noites quentes de amor. O dia do nosso casamento foi o mais feliz e nesse dia encontrei sentido para a minha vida. És a mais bela, Laura. Sinto a ta falta… Amo-te. Reconheço os teus traços da cara mesmo hoje. Lembro-me de todas as tua rugas da idade que tinhas e que eram (e continuam a ser) as mais bonitas que alguma vez vi. O teu cheiro não sai dos lençóis e sinto a tua presença a aconchegar-me todas as noites. As tuas mãos quentes que me tocavam o rosto todos os dias de manhã, vão agora sendo esquecidas aos poucos... Mas depois de dez anos não acho estranho. Há uma coisa que é constante na minha memória: o nosso jogo da verdade. Todas as noites, tu e eu, dizíamos o que sentíamos sinceramente sobre alguma coisa. Muitas foram as noites em que se dizia “adoro-te” e a noite era longa. Sinto a falta de tudo isso.

Quando introduzi a mão direita na música, e consequentemente as notas mais agudas, recordei os meus tempos da guerra. O meu melhor amigo morreu-me nos braços… Tínhamos vinte e seis anos. És o mais forte de todos, José! Sinto a tua falta, a falta daqueles discursos sobre o certo e sobre o errado. Só tu sabias sempre o que dizer. Não havia tema que eu não te apresentasse e que tu não tivesses já opinião formada e discurso pronto para mim. Morreste de uma maneira tão estúpida! Porque nos obrigaram a ir para ali? Porque tiveram os inocentes de partir?! Nunca encontrámos a resposta e o resultado é este: eu não te tenho aqui comigo. Ainda me recordo daquela tarde em que nos sentámos nas escadas a ver as raparigas a passar. Acabámos por casar com as meninas dos nossos olhos e sermos felizes. Nós atirávamos pedras para que elas olhassem para nós. Ahh… Éramos tão tolinhos. Mas foram momentos tão felizes passados contigo. Juntos aprendemos que os homens também choram. Até sempre meu Amigo!… Sinto que em breve nos encontraremos.

Mais á frente lembrei-me dos meus tempos de juventude. Era tão ingénuo. Lembro-me do dia em que recebi o relógio de bolso do meu avô. Eu tinha apenas dez anos e jamais me esquecerei disso! Amo-te tanto avô! Sim, homem que é homem também ama a família e não tem vergonha de o fazer. O meu avô foi a pessoa mais importante da minha vida. Foi com ele que aprendi o que sei hoje e aliás, foi ele com as suas mão gastas pelo tempo que me ensinou a tocar piano. Foste tu, avô, que me deste as dicas para ensinar a conquistar a mulher que ainda hoje amo. Foste tu que me limpaste as lágrimas quando a avó morreu no acidente de carro com os meus pais. Eu tinha doze anos e já sabia o que a vida guardava às pessoas. Sabia que tinha de lutar pelo que queria e que nada se conseguia sem esforço. Ensinaste-me que a avó e os meus pais iam estar sempre no relógio e quando precisasse de falar com eles apenas tinha de o agarrar e olhar a estrela mais brilhante do céu. Muitas foram as vezes que o fiz mas mais ainda as que corri para ti para te abraçar e deixar-te ver-me chorar. Deixaste-me dois dias antes de casar e entendi isso como um sinal. Sinal de que a minha mulher viria oferecer-me aquilo que outrora me deste. Obrigado por teres passado fome para me alimentar, por teres rasgado as tuas roupas para me aquecer. Obrigado por me teres apoiado nos momentos mais difíceis da minha vida, mas principalmente Obrigado por teres sido a minha família. Em breve falaremos.

Quase no fim da melodia recordei os tempos do ciclo em que corria pela casa com o meu amigo que já na altura era o José e brincávamos aos soldados. Ah, ingénuos! Não sabíamos o que nos esperava. Tempos alegres foram esses da nossa meninice. Éramos leves. Mais que tudo, eu era feliz. Nunca tinha reparado como a vida passa tão depressa mas agora que aqui estou e toco esta última música sinto a vida a escapar-me pelos dedos. Doença estúpida! Coração fraco! Guardei estas últimas forças para tocar no piano do meu avô e foi das escolhas mais acertadas da minha vida.

Agora percebo quando me diziam que não valia a pena discutir nem lutar por causas perdidas. A vida é só uma e eu orgulho-me de dizer que a vivi da melhor maneira. Evitei aborrecer-me e aborrecer. Sim, sofri muito nesta vida e sei que não vou voltar a ter companhia. É a lei da vida. Os velhos acabam sozinhos e não são levados a sério pelos mais novos. Ah…. Tantas foram as vezes que tentei evitar que a rapaziada se metesse em problemas porque não valia a pena, inúmeras foram as vezes que pedi para que estudassem e pudessem ser alguém nesta complicada e dura vida, incontáveis foram as vezes que mostrei que sofrer por antecipação não vale a pena porque a vida encarrega-se de nos magoar para nos chamar à razão e provar que sonhar é bom mas fazê-lo em demasia causa desilusões. O filme da vossa vida é pintado com as cores que vocês criam. Escolham bem o que querem fazer e nunca pensem que terão tempo para fazer tudo. Fui feliz mas muita coisa ficou por fazer. Aquela viagem à Áustria com o José ficou por fazer e a boda de ouro com a Laura nunca teve tempo para acontecer. Arrependo-me e tento ensinar quem ainda não apreendeu. Fico sempre de fora porque sou só mais um velho pobre e sozinho esta vida. Não me levam a sério e perdem com isso. Muito teria para ensinar.

Vejo o meu reflexo no piano cuidadosamente limpo. A minha cara está estragada pelo vento, tenho as lágrimas a caírem-me pelo rosto e poucos são os cabelos cor da cal que ainda me restam. Queria tanto que a Laura, o José e o avô me vissem agora! A Laura dizia sempre que os cabelos brancos eram sabedoria. E o José dizia que nunca haveria de ter sinas de velhice no rosto e que viveria até aos cem anos. O meu avô sempre me ensinou que nem todos eram capazes de chegar à idade dos cabelos brancos porque muitos ficavam pelo caminho derrotados pela miséria.

Sinto-me realizado e feliz. Amo-te vida!

Soou o último acorde da melodia e o pobre velho deixou-se cair sobre o piano com o antigo relógio no bolso. As pessoas importantes da sua vida aguardavam-no lá em cima. Agora ele está ainda mais feliz.