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domingo, 28 de setembro de 2008

Dedicatória

E é assim. Continuo sentada à espera que a ideia surja para a poder agarrar e prender no papel. Como que por um acto de malandrice, ela anda à minha volta mas foge. Começo a correr atrás dela pela casa até que a encontro recostada na cadeira verde de madeira que está na minha varanda. Por pura sacanagem, ela começa a falar comigo só para fazer pirraça mostrando-me que sabia o que eu queria escrever. Fi-la sentir-se confortável e lá consegui falar com ela. Começámos a divagar alto sobre os mil e um trilhos da existência. Concordámos que a vida se revela ao mundo como uma alegria. Há alegria no jogo eternamente dominado pelas suas matrizes, na música das suas vozes, na dança dos seus movimentos. A morte não pode ser verdade enquanto não desaparecer a alegria do coração do ser humano. Se me sentir cansada, sento-me a descansar à beira do caminho, mas sempre virada para a frente para ver o que me falta andar, e de costas viradas para o que já andei. Afinal, trata-se tudo de atingir a meta. Ser Homem significa escolher um objectivo dirigir-se para ele com toda a conduta, pois não ordenar a vida a um fim é sinal de grande estupidez.

A ideia ali sentada vai debitando pensamentos soltos que tento apanhar a todo o custo. Alguns mais difíceis que outros, mas todos possíveis. Até o vento me distrai, e perco-me no vago. Estar perdida implica errar. Metade dos nossos erros na vida nascem do facto de sentirmos quando devíamos pensar e pensarmos quando devíamos sentir. Orgulho-me de pensar e sentir. A vida ensinou-me a fazer as duas coisas na altura certa.

As rugas não trazem só o meu ar de mulher vivida. Trazem-me aquilo que muitos querem e poucos alcançam, experiência. Não basta existir para se ganhar experiência. É preciso viver. Aprendi que não são precisos nove meses para fazer um Homem, são precisos sessenta anos. Sessenta anos de ideias, de sonhos, de realidades. Sessenta anos de amores, desamores e desilusões. Nunca confundi amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer. Assim, sei reconhecer aquele que ama verdadeiramente: é aquele que não pode ser prejudicado. O amor verdadeiro começa onde não se espera nada em troca.

Sempre lutei na vida. (Ainda há pouco lutei com a maldita ideia que não queria assentar no papel.) A minha maior guerra sempre foi e sempre será a tal travada com a imbatível inteligência. O génio consiste em um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração. Talvez ainda não tenha transpirado o suficiente. Mas sei que não sou burra. Há marcadores naturais de burrice. Ninguém experimenta a profundidade de um rio com ambos os pés. Quem o faz ou tem um atraso, ou demasiada fé. Acredito que a fé possa trazer felicidade, mas há que saber equilibrar a fé e a racionalidade. Juntas garantem sucesso. O importante numa religião não é saber se Deus existe ou não, é acreditar em alguma coisa. Acreditar em alguma coisa, faz-me feliz. Se não encontrar a felicidade em mim mesma, é inútil procurá-la noutro lugar.

Esta varanda é o lugar que me faz feliz. E a minha companhia, a ideia, está determinada a resumir em poucas palavras aquilo que senti ao longo do meu percurso. “Mesmo que tenhas dez mil plantações, só podes comer uma tigela de arroz por dia; ainda que a tua casa tenha mil quartos, nem de dois metros quadrados precisas para passar a noite.”- disse ela sabiamente julgando que não compreenderia. Mas compreendi. Existem apenas duas maneiras de ver a vida. Uma é pensar que não existem milagres e a outra é que tudo é um milagre.

Viver e aprender conduz ao sucesso. Vencer não é nada, se não se teve muito trabalho; fracassar não é nada se se fez o melhor possível. Na maioria das vezes, “o melhor possível” é sinónimo de ascensão na vida. O difícil não é subir, mas, ao subir, continuarmos a ser quem somos. Muitos sobem e vencem, mas poucos continuam felizes. Não importa o simples facto de se ter sucesso, mas sim o facto de se ter sucesso e amigos. Nenhum caminho é longo demais quando um amigo nos acompanha. No entanto, nem todos sabem o que é ser-se amigo. Alguns pensam que para se ser amigo basta querê-lo, como se para se estar são bastasse desejar a saúde... É por isto que há tanta gente a queixar-se por ter caminhos demasiado longos e penosos pela frente. Sentam-se a olhar para trás e recusam ajuda para se erguerem de novo, apenas por uma questão de orgulho. Sempre foi o maior erro do ser humano, o querer parecer.

As pessoas andam envoltas numa névoa de fumo que não deixa transparecer o verdadeiro. Tornou-se moda fumar, especialmente fumar a falsidade. É por isso que há tanta lei anti-tabaco, é para as pessoas finalmente se conhecerem. Acredito que nem pais e filhos se conheçam. Nada é como antes, nem vai voltar a ser.

-Estou cansada – digo na esperança de ouvir resposta – e tu? Ideia? Estás-me a ouvir?

Também ela se cansou e foi embora. Vivo num mundo cheio de pressa. Pode ser que um dia, demasiada pressa colida e desmascare a lentidão camuflada nesta sociedade de fingimento.




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Este texto foi dedicado à Alexandra Pereira no seu livro de dedicatórias.