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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

#2

    - Mas porquê eu, se me esforço tanto para ser uma muralha?
    - Porque consigo ver para além dos muros. Porque consigo ver-te. No fundo sei aquilo que escondes e pensas já não existir. Desatei o cordel que prendia a caixa que te empacotou a alma. E tu nem deste conta. Minto, deste. Tanto deste conta disso que te desligaste de mim. E eu tenho pena disso, assim como saudades. A verdade, e devo admitir, é que contigo não tenho medo de ser quem sou. Não tenho medo de errar, de te mostrar aquilo que de mais precioso tenho e entregar-me, por completo. E juro-te que isso nunca aconteceu antes. Nem eu entendo porque raio tinha de ser agora, logo nesta altura estúpida e absolutamente louca. Nenhum de nós quer isto agora. Tu ainda queres menos que eu. Mas eu nunca tive pressa de chegar à ultima página até porque rezo muito para que ela nem exista, para que o último capítulo nada mais seja que um deixar em aberto para o segundo volume, para a continuação do que seremos.
      - Tenho medo. E pouca paciência também. E pouco tempo. Pronto, admito que possam ser desculpas para te baralhar com palavras até entenderes que o que me demove é só o pânico da dor.
     - Todos temos medo. Eu tenho medo da morte, de aranhas, da solidão, de não ser boa o suficiente. Mas não tenho medo de ti. Nenhum mesmo. És o meu porto seguro, a âncora que me mantém fixa num lugar: a ti. Não te exigi nada que não quisesses dar. Não te chamei, não te agarrei, não disse nem fiz. Fiquei até tu queres chegar. E chegaste. Fizeste, agarraste, chamaste e disseste (pouco). E nunca me imaginei tão tolerante. É por isso que és tu. És tu que, mesmo escondido atrás do que queres ser, me entendes. Pelos gostos em comum, pelo ritmo, por seres e por eu ser. Porque no fundo, somos.
      - Sim, somos."

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

#1

        Ela pegou nos papeis todos e rasgo-os com tanta violência como o embate de um corpo com o chão depois de largado a cem metros de altura, desamparado. Aquela merda toda deixou de fazer sentido. Memórias soltas deixadas em forma de palavras escolhidas meticulosamente para que ele percebesse. Ele nunca foi bom com palavras e a Princess não queria ficar com letras presas na garganta. Ou deverei dizer caneta? Bem, seja como for, ela queria fazer-se entender. Deixar que ele lhe vasculhasse a alma através de frases escritas que haviam sido despregadas do coração. Sim, porque ao contrário dele, ela tinha-o.
        Mas, decidiu ela, há causas que se têm de dar por perdidas. Partilharam ideias, sorrisos, piadas tão estúpidas que só os dois podiam entender no meio daquela orquestra de lenços perfumados que soavam a prazer, discutiram temas sérios, temas menos sérios e coisas banais. Ligaram-se por quantos fios tinham e ela estava surpreendida com isso. A Princess nunca se havia imaginado tão tolerante e tão segura de si perto de um quase estranho. E era essa segurança que a fazia viver num turbilhão de ideias que tinham de ser presas por tinta num qualquer pedaço de folha em branco. Não que a folha tivesse de ser branca. O que conta é a mensagem, não o embrulho. É como as pessoas: o que conta é o que está por dentro, não aquilo com que se mascaram. E ele estava nu. Despido de ideias feitas. Continua assim, completamente vazio de tudo o que ela detesta, um mar de virtudes, portanto.
         O que aconteceu? Ele sabe. Eu sei que ele sabe. Mas a verdade é que aquelas jardineiras nunca mentiram. Já elas gritavam o futuro que agora é um presente difuso. Se não se conhecesse, a Princess diria que tinha fumado uma ganza num qualquer beco húmido e frio, embrulhada numa manta xadrez preta e vermelha encontrada no contentor de lixo mais próximo. Daqueles de metal, que fazem uma barulheira tremenda mesmo quando se quer ser discreto. A mesma barulheira que as palavras dele, ou ausência delas, criou na cabeça dela e ainda hoje a deixa sem entender onde se meteu. Se calhar ela quis demais. Não é boa o suficiente. Não pode pedir, ou esperar, aquilo que nunca teve. Ele avisou vezes e vezes sem conta. Até eu, eu mesma, a avisei infinitas vezes. Ainda hoje a relembro de ideias, de feridas que tem, de marcas da vida, que apesar de tudo, convenhamos, é curta. Mais curta que a dele.
          Não devias ter visto logo que ia ser assim? Eu disse-te over and over again. Primeiro foi o Luigi. Estavas à espera que as coisas mudassem? Porque não mantiveste em mente a conversa que tivemos? Eu expliquei-te que o que tu mereces, o que vales. Nem o das jardineiras, nem ele é diferente. Eu canso-me de repetir-te isso. Lembras-te daquela tarde em que nos sentámos na tua cama, recostadas na almofada e tu de caneta na mão? Usaste-me para escrever exactamente o que te ditei, que ia ser sempre assim por mais que quisesses pensar o contrário. Nem todos têm o direito a completar o puzzle, a ser completos. Mentaliza-te do que te digo. Não caias na asneira de novo...
          Mas a verdade é que a Princess já tinha quase um livro para editar. Uma quantidade de folhas bruta que agora estavam temperadas com o sal dos olhos dela. Poderia dizer "pobre ela..." mas a verdade é que ela sabia o que a esperava. Ela pegou na balança e tentou contrapor o que passaria com ele mas sem o ter, e sem ele, de forma nenhuma. Pronto, admito que estou a mentir. Ela nunca pesou isso. Não conseguiu. Queria-o. Por que raio haveria de pesar uma coisa cujo valor lhe desinteressava por completo? Lutou, caiu e vai-se levantar já amanhã.
         Arredei agora a cortina da minha janela e vejo que já se põe de pé. É. Ela é forte. E também nunca se entregou, nunca lhe deu a chave para ele ver o que ela é. Um bocado como aquelas free samples que nos dão nas perfumarias, ela deixou que ele constatasse que a essência dela era a melhor, mas nunca lhe deu o frasco para a mão. Ele, se quisesse, que o viesse buscar, pensava ela. Continuo a achar que a culpa é das jardineiras. E daquela pirosa camisola vermelha que ele enverga. Arruinaram tudo.
         Porque é que ele se veste tão mal? Porque não quer ser bonito, simples. Quer ser feio e mau. É um escudo como outro qualquer. Válido, certamente. Tão válido e eficaz como um colete à prova de bala. Uma espécie de ideia estúpida que ele criou depois de se ter metido com uma puta qualquer. Ou então ela não o era. Não sei. Nem dá para entender. O escudo é tão denso que só se vê nevoeiro dentro dele. Uma espécie de manto a proteger a semente do que é. Não gosta, não ama, não adora, não é dependente de nada. A não ser da família, que no fundo, é o alicerce dos fracos. Não por ter menos valor, claro que não! Nenhum forte se levantou sem tal pilar. Mas os fortes não se prendem só a isso, porque no fundo a família é a única coisa garantida que temos. Por mais batalhas que percamos, vai estar sempre lá. Sempre. E ele prendeu-se a isso. Para que amar se tem pais? Para quê adorar se tem primos e irmãos? Para quê? E por estarem em família, todos comem cogumelos. Dão vida, diz-se.
        Ela achava que ia passar isso, rasgar o véu, deslindar o código, encontrar a chave e tirar-lhe o cadeado do coração. Ele afinal nem o tem. Quer dizer, não o quer ter. Para ela. Não o quer ter para ela, não lho quer dar. Não quer que ela seja mais do que ela nem sequer é. É isso. Ela para ele é um nada vazio. A pequena Princess não passa de um ínfimo ponto naquilo que ele nem quer ver. Mas se o carinho que ela tem por ele fosse areia, muito mais desertos teriam de ser inventados para que ele entendesse o que lhe vai na alma. Nem é só carinho. É respeito. É admiração por aquilo que ele é, pelos valores que tem. Até aquele jeito estúpido de estar sempre a afastá-la, mesmo que não note, ela gosta. Aquelas palavras sem sentido, os vídeos estúpidos, os canos percorridos para colher estrelas, os pedaços de alma que ele deixava escapar por entre sorrisos e que ela captava como ninguém, tudo isto era o mundo dela. Um mundo tão extenso e tão rico em sensações que não só as palavras que ela lhe dizia eram suficientes para vazar o sentimento do corpo. Ela nunca disse "gosto muito de ti", por exemplo. E ela sentia-o! A sério que sim! Com as mãos geladas do frio gélido que está na rua, limpou as lágrimas muitas vezes do rosto jovem e bem tratado depois de se ter visto obrigada a cortar palavras duma mensagem qualquer a enviar. Doía ter de controlar o pensamento. Doía por a barreira na alma.
        Mas ela tem um coração tão grande que tanta palavra lhe entupia o sistema. Foi por isso que apareceram todas estas folhas que ela agora rasga cruelmente. Quase como se fossem o corpo dele. O corpo e o sonho porque o que magoa destruir é o sonho, e não a relação com ele. O coração dela está tão diminuto no meio daquelas vestes cor de rosa. Tão pequenino que creio já nem existir. E é melhor assim. Se este das jardineiras e da t-shirt vermelha não quer mandar o muro a baixo, mais ninguém vai querer. Ela sente isso. Se calhar é melhor mentalizar-se já. Assim daqui a uns vinte anos isto já nem vai custar. É tudo o hábito. Ele vai ser infeliz assim. Vai, é óbvio. Vai perder pessoas que gostam tanto dele como ela. Aliás, menos, porque o que ela sente por ele não é passível de ter cópias por esse mundo. É respeito. É carinho e bem estar. É aquela sensação de ele nem ter de dizer as palavras para ela se sentir bem. Não há silêncios incómodos entre eles. Até há espaço para o candeeiro.
      E é com a cabeça feita em água (e a cara, claro), que ela se dirige à janela que tem a vista para toda a cidade, e larga os milhares de pedacinhos de papel que resultaram daquela chacina de palavras sentidas. Os pequenos papeizinhos propagam-se no ar levados pelo vento frio que corta o rosto e beijam a cidade em todos os locais que para eles podiam, um dia, ter feito sentido.
     E o que lhe está a doer é a ideia de um dia, depois de já ter decidido cortar os fios, ele poder pensar "merda, era aquela!".